Não há como não enxergar algumas ótimas lições destas manifestações
É cedo para estabelecer qualquer cenário definitivo, mas não há como não enxergar algumas ótimas lições decorrentes desta onda de manifestações pelas ruas e avenidas de várias cidades do Brasil.
A pauta de reivindicações é amplíssima, contudo, ao que parece, parte de uma vontade tremenda de gritar por uma sociedade melhor, e que seja resultado de uma democracia participativa e não apenas representativa. Existe um descontentamento evidente com os sistemas político e econômico, que isolam grande parte da população dos momentos decisivos quanto ao presente e ao futuro do país e a transformam em mera massa consumidora. E isso pode ser dimensionado, também, nas instâncias municipais e estaduais.
A pauta engloba o descontentamento com os volumes de investimentos relativos à realização de grandes eventos, a saber, sobretudo, à Copa das Confederações e à Copa do Mundo, em detrimento ao que se aplica em áreas cruciais do Brasil, como a saúde e a educação. Brasil melhorou a olhos vistos nesses setores em relação à plataforma neoliberal antes instituída no país, assim como na geração de emprego e renda e implementação de programas sociais. No entanto, a população quer mais.
Por isso a pauta de reivindicações incorpora a necessidade de se acabar ou diminuir a força do lobby do setor privado da saúde e fortalecer a quantia de investimentos, rapidez e qualidade no atendimento do Estado nesta área. Engloba a importância de que o Congresso Nacional aprove a obrigatoriedade de o Orçamento Geral da União destinar à educação 10% do PIB, o que corresponde a uma forte reivindicação dos sindicatos de trabalhadores da área.
Acrescentaria a histórica reivindicação de trabalhadores sindicalizados, de redução da jornada de trabalho, de 44 horas semanais para 40 horas, sem diminuição do valor do salário. Também: a garantia de demarcação de terras indígenas; a criação de impostos sobre fortunas; a implantação de uma política pública de regulação de preços, evitando que “atravessadores”, comercianteempresários e industriais de médio e grande portes faturem em cima de pequenos produtores e dos consumidores. Além disso, o fortalecimento do mercado consumidor e produtor nacional, diminuindo a influência de especuladores nacionais e internacionais.
A pauta de reivindicações precisa partir de uma consciência de classe social, ideológica, que leva em conta as raízes dos problemas nacionais, os embates que existem em busca dos rumos da nação. Afinal, só para exemplificar, é ilusão (ou bem difícil) imaginar que latifundiários e sem terra estarão na mesma manifestação por melhoria de vida no campo e na cidade. Um lado defende concentração de terras, outro, distribuição. Por isso é fundamental ter consciência de classe (dizer de que lado está) para não ser massa de manobra de articulações que querem vender o “discurso do fim do mundo”, de que o Brasil nunca esteve pior, pois isto tem o objetivo maior de reverter votos em 2014.
Novo tipo de liderança
Outro elemento possível de se enxergar é que as movimentações sociais não têm uma linha de condução tradicional, com um comando fechado, que dá orientações de cima para baixo, o que reproduziria uma lógica também representativa, ainda que em outro espaço de organização.
As direções para as quais os protestos caminham, ideologicamente e quanto às suas definições mais pragmáticas, no que diz respeito a horários, locais de concentração e trajetos, se dão de modo mais coletivo, distante da ideia de cúpula ou grupo central. Há mais participação e mais vontade de contribuir; uma liderança de tipo dissolvido, espalhado, de cunho horizontal (menos hierárquico). Apesar disso, para que as cobranças sejam efetivas e surtam efeitos consistentes, é preciso ter argumentos sólidos e dirigir as reivindicações a quem tem poder e dever institucional para atendê-las.
Pessoas que participam e estão filiadas a partidos políticos podem e devem estar nas ruas, porque as manifestações são democráticas, contanto a linha de condução não parte de uma deliberação de agremiação.
Aula sobre e nas ruas
Esse tom mais contemporâneo, menos centralizador, contagia a juventude. Pois não é à toa que em sala de aula ontem (segunda-feira, 17), o conteúdo de Ética e Legislação Jornalística teve de ser adequado às inquietações que os estudantes trouxeram quanto aos protestos espalhados pelo país. Até tentei seguir o planejado, com a análise de um caso emblemático na cobertura jornalística mato-grossense, porém vi que a aula era outra e estava sendo dada não por mim, todavia pela turma.
Perguntas acerca das manifestações, a consulta constante a celulares e computadores portáteis para saber o que “rolava” em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, deram o tom pedagógico e metodológico da disciplina.
E como foi importante saber que um dos estudantes tem dormido só duas horas por dia, dedicando seu empenho psicológico e intelectual a acompanhar e replicar vídeos sobre as manifestações, sobretudo de origem alternativa e contestatória à cobertura da chamada mídia tradicional. Soco no estômago da Globo, Bandeirantes, Record, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e demais.
Ele está louco para pegar um ônibus e ir para São Paulo, mas talvez se contente, por ser fim de semestre (avaliações finais) e pela condição financeira, em organizar e participar de um protesto em Alto Araguaia ainda esta semana. Afinal, a força do grito de uma nação se compõe de manifestações em cidades espalhadas por seu território, com pautas regionalizadas e, ainda assim, conexas com um sentimento amplo, maior.
Também foi importante ouvir de uma estudante que atos tidos como ilegais muitas vezes representam uma fúria contida há muito tempo e que sua tipificação, como irregular, pode não passar de uma forma de inibir alterações no sistema. O caso exposto em sala de aula foi o das pichações ocorridas durante os protestos. Antes visto pela turma prioritariamente como algo negativo, o ato de pichar passou a ser enxergado de outra forma, partindo da situação em que se dá e de seu objetivo maior.
Transporte
Por fim, toco no tema que iniciou os protestos em São Paulo e que ainda é mencionado nas manifestações, mas não mais como carro-chefe. O transporte coletivo é um problema muito sério no Brasil e não se restringe a aumento de tarifas, tal qual o recente na capital paulista, de R$ 3,00 para R$ 3,20.
A qualidade do serviço recebe reclamações em todas as regiões do país, o que invariavelmente significa preços caros, má qualidade das frotas, superlotações e dificuldade em cumprir horários. Também são constantes as denúncias de existência de cartel e superfaturamento das tarifas, como se acompanha em Cuiabá desde 2005.
Planilhas com valores de combustível, lubrificantes e pneus em patamares de varejo e não de atacado são práticas repelidas pelos movimentos que se organizam na cidade e se tornaram inclusive ações judiciais apresentadas pelo Ministério Público Estadual.
Portanto, a decisão da prefeitura de Cuiabá de reduzir o preço da passagem de R$ 2,95 para R$ 2,85 não deve ser comemorada sem antes “se estudar o estudo” que a administração municipal fez para se chegar a tal conclusão. Isso significa também que os protestos preparados para ocupar as ruas da cidade não devem cessar, visto que a caminhada é longa e o buraco é bem, bem mais embaixo. Pois um dos recentes movimentos na história de Cuiabá que mobilizou a sociedade em torno desse assunto, o Comitê de Luta pelo Transporte Coletivo (CLTP), sempre teve como fortes bandeiras a redução da tarifa, a ampliação do passe livre e a estatização do setor.
Por fim, em São Paulo, origem das recentes manifestações de grande porte, o prefeito Fernando Haddad (PT) comete um grave erro ao condicionar redução da tarifa do transporte à diminuição de investimentos em saúde e habitação. Parece até uma cópia requintada do que, no início ano, o alcaide de Cuiabá, Mauro Mendes (PSB), disse em relação à reivindicação de que se revogasse o aumento do IPTU. Ele falou que se não elevasse o valor do imposto não teria condições de construir um novo hospital municipal. Pois, por pressão, teve que revogar o aumento do IPTU e abandonar o discurso ameaçador. É apenas um aviso, Haddad.
GIBRAN LUIS LACHOWSKI é jornalista e professor do curso de Comunicação da Universidade do Estado de Mato Grosso (UnematAlto Araguaia)
A pauta de reivindicações é amplíssima, contudo, ao que parece, parte de uma vontade tremenda de gritar por uma sociedade melhor, e que seja resultado de uma democracia participativa e não apenas representativa. Existe um descontentamento evidente com os sistemas político e econômico, que isolam grande parte da população dos momentos decisivos quanto ao presente e ao futuro do país e a transformam em mera massa consumidora. E isso pode ser dimensionado, também, nas instâncias municipais e estaduais.
A pauta engloba o descontentamento com os volumes de investimentos relativos à realização de grandes eventos, a saber, sobretudo, à Copa das Confederações e à Copa do Mundo, em detrimento ao que se aplica em áreas cruciais do Brasil, como a saúde e a educação. Brasil melhorou a olhos vistos nesses setores em relação à plataforma neoliberal antes instituída no país, assim como na geração de emprego e renda e implementação de programas sociais. No entanto, a população quer mais.
Por isso a pauta de reivindicações incorpora a necessidade de se acabar ou diminuir a força do lobby do setor privado da saúde e fortalecer a quantia de investimentos, rapidez e qualidade no atendimento do Estado nesta área. Engloba a importância de que o Congresso Nacional aprove a obrigatoriedade de o Orçamento Geral da União destinar à educação 10% do PIB, o que corresponde a uma forte reivindicação dos sindicatos de trabalhadores da área.
Acrescentaria a histórica reivindicação de trabalhadores sindicalizados, de redução da jornada de trabalho, de 44 horas semanais para 40 horas, sem diminuição do valor do salário. Também: a garantia de demarcação de terras indígenas; a criação de impostos sobre fortunas; a implantação de uma política pública de regulação de preços, evitando que “atravessadores”, comercianteempresários e industriais de médio e grande portes faturem em cima de pequenos produtores e dos consumidores. Além disso, o fortalecimento do mercado consumidor e produtor nacional, diminuindo a influência de especuladores nacionais e internacionais.
A pauta de reivindicações precisa partir de uma consciência de classe social, ideológica, que leva em conta as raízes dos problemas nacionais, os embates que existem em busca dos rumos da nação. Afinal, só para exemplificar, é ilusão (ou bem difícil) imaginar que latifundiários e sem terra estarão na mesma manifestação por melhoria de vida no campo e na cidade. Um lado defende concentração de terras, outro, distribuição. Por isso é fundamental ter consciência de classe (dizer de que lado está) para não ser massa de manobra de articulações que querem vender o “discurso do fim do mundo”, de que o Brasil nunca esteve pior, pois isto tem o objetivo maior de reverter votos em 2014.
Novo tipo de liderança
Outro elemento possível de se enxergar é que as movimentações sociais não têm uma linha de condução tradicional, com um comando fechado, que dá orientações de cima para baixo, o que reproduziria uma lógica também representativa, ainda que em outro espaço de organização.
As direções para as quais os protestos caminham, ideologicamente e quanto às suas definições mais pragmáticas, no que diz respeito a horários, locais de concentração e trajetos, se dão de modo mais coletivo, distante da ideia de cúpula ou grupo central. Há mais participação e mais vontade de contribuir; uma liderança de tipo dissolvido, espalhado, de cunho horizontal (menos hierárquico). Apesar disso, para que as cobranças sejam efetivas e surtam efeitos consistentes, é preciso ter argumentos sólidos e dirigir as reivindicações a quem tem poder e dever institucional para atendê-las.
Pessoas que participam e estão filiadas a partidos políticos podem e devem estar nas ruas, porque as manifestações são democráticas, contanto a linha de condução não parte de uma deliberação de agremiação.
Aula sobre e nas ruas
Esse tom mais contemporâneo, menos centralizador, contagia a juventude. Pois não é à toa que em sala de aula ontem (segunda-feira, 17), o conteúdo de Ética e Legislação Jornalística teve de ser adequado às inquietações que os estudantes trouxeram quanto aos protestos espalhados pelo país. Até tentei seguir o planejado, com a análise de um caso emblemático na cobertura jornalística mato-grossense, porém vi que a aula era outra e estava sendo dada não por mim, todavia pela turma.
Perguntas acerca das manifestações, a consulta constante a celulares e computadores portáteis para saber o que “rolava” em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, deram o tom pedagógico e metodológico da disciplina.
E como foi importante saber que um dos estudantes tem dormido só duas horas por dia, dedicando seu empenho psicológico e intelectual a acompanhar e replicar vídeos sobre as manifestações, sobretudo de origem alternativa e contestatória à cobertura da chamada mídia tradicional. Soco no estômago da Globo, Bandeirantes, Record, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e demais.
Ele está louco para pegar um ônibus e ir para São Paulo, mas talvez se contente, por ser fim de semestre (avaliações finais) e pela condição financeira, em organizar e participar de um protesto em Alto Araguaia ainda esta semana. Afinal, a força do grito de uma nação se compõe de manifestações em cidades espalhadas por seu território, com pautas regionalizadas e, ainda assim, conexas com um sentimento amplo, maior.
Também foi importante ouvir de uma estudante que atos tidos como ilegais muitas vezes representam uma fúria contida há muito tempo e que sua tipificação, como irregular, pode não passar de uma forma de inibir alterações no sistema. O caso exposto em sala de aula foi o das pichações ocorridas durante os protestos. Antes visto pela turma prioritariamente como algo negativo, o ato de pichar passou a ser enxergado de outra forma, partindo da situação em que se dá e de seu objetivo maior.
Transporte
Por fim, toco no tema que iniciou os protestos em São Paulo e que ainda é mencionado nas manifestações, mas não mais como carro-chefe. O transporte coletivo é um problema muito sério no Brasil e não se restringe a aumento de tarifas, tal qual o recente na capital paulista, de R$ 3,00 para R$ 3,20.
A qualidade do serviço recebe reclamações em todas as regiões do país, o que invariavelmente significa preços caros, má qualidade das frotas, superlotações e dificuldade em cumprir horários. Também são constantes as denúncias de existência de cartel e superfaturamento das tarifas, como se acompanha em Cuiabá desde 2005.
Planilhas com valores de combustível, lubrificantes e pneus em patamares de varejo e não de atacado são práticas repelidas pelos movimentos que se organizam na cidade e se tornaram inclusive ações judiciais apresentadas pelo Ministério Público Estadual.
Portanto, a decisão da prefeitura de Cuiabá de reduzir o preço da passagem de R$ 2,95 para R$ 2,85 não deve ser comemorada sem antes “se estudar o estudo” que a administração municipal fez para se chegar a tal conclusão. Isso significa também que os protestos preparados para ocupar as ruas da cidade não devem cessar, visto que a caminhada é longa e o buraco é bem, bem mais embaixo. Pois um dos recentes movimentos na história de Cuiabá que mobilizou a sociedade em torno desse assunto, o Comitê de Luta pelo Transporte Coletivo (CLTP), sempre teve como fortes bandeiras a redução da tarifa, a ampliação do passe livre e a estatização do setor.
Por fim, em São Paulo, origem das recentes manifestações de grande porte, o prefeito Fernando Haddad (PT) comete um grave erro ao condicionar redução da tarifa do transporte à diminuição de investimentos em saúde e habitação. Parece até uma cópia requintada do que, no início ano, o alcaide de Cuiabá, Mauro Mendes (PSB), disse em relação à reivindicação de que se revogasse o aumento do IPTU. Ele falou que se não elevasse o valor do imposto não teria condições de construir um novo hospital municipal. Pois, por pressão, teve que revogar o aumento do IPTU e abandonar o discurso ameaçador. É apenas um aviso, Haddad.
GIBRAN LUIS LACHOWSKI é jornalista e professor do curso de Comunicação da Universidade do Estado de Mato Grosso (UnematAlto Araguaia)
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