Por Saul Leblon, em Carta Maior
Por que uma camareira não teve medo de denunciar o dirigente máximo do FMI, mas os partidos e governos vergam diante do Fundo e das imposições dos mercados financeiros?
A pergunta soa irônica. Mas encerra uma cortante ilustração dos dilemas embutidos numa crise em que os mercados financeiros encontram liberdade para pautar as” soluções” – e explicações – para o colapso que criaram, poupando-se de maiores ônus em detrimento da economia e da sociedade.
A pirueta não seria possível sem a rede de segurança que tem sido estendida pelos governantes e legendas de esquerda, colonizados pela capacidade argumentativa das finanças em repetir à exaustão nos últimas quatro décadas: “não há alternativa”.
A indiferenciação entre direita e a esquerda no manejo da crise tem sedimentação histórica. O que se vê hoje é a fotografia de corpo inteiro de uma longa captura da social-democracia pelo cânone neoliberal, o que permitiu às finanças desreguladas tornarem-se o eixo ordenador da economia e de todas as instâncias da sociedade.
A comparação entre a coragem da camareira e a submissão aos ditames dos mercados toma emprestado um raciocínio do economista Robert Kuttner, em seu artigo “O paradoxo do progresso social e da reação econômica, publicado por Carta Maior.
O texto de Kuttner chama a atenção para um aspecto pouco explorado do escândalo envolvendo Dominique Strauss Kahn: a questão do poder real subjacente aos protagonistas.
Afinal, como foi que uma camareira do sofisticado Sofitel da Times Square de Nova Iorque, que cobra diárias de US$ 3 mil, teve a coragem de denunciar o então diretor máximo do FMI por abuso sexual?
A resposta, explica Kuttner , remete em boa parte à organização dos conselhos de base que tornaram os trabalhadores da rede de hotéis e motéis de Nova Iorque uma das categorias mais poderosas do país. “O sindicato dela é um dos mais fortes sindicatos da América – não é forte por conta dos dirigentes sindicais, mas porque está imerso no local de trabalho”, detalha o economista cujo texto contrasta os avanços acumulados nas últimas décadas na esfera dos costumes e da tolerância e a regressividade econômica.
“Como é que demos passos tão pesados para trás em questões econômicas?”, pergunta Kuttner. “Isso se deve ao poder”, responde. “Os proprietários da riqueza financeira se tornaram cada vez mais poderosos politicamente; os movimentos que lhes são contrários se tornaram drasticamente enfraquecidos”.
A trinca aberta entre a base da sociedade e aqueles que deveriam vocalizar esse conflito , mas, sobretudo, a desorganização dessas bases e a negligência deliberada de muitos partidos em fortalecê-las redundou no divórcio explícito revelado pela atual crise.
Na Europa, a distância entre o sentimento das ruas e o que decidem e implementam governantes e parlamentos atingiu proporções caricatas.
O fosso é proporcional à virulência do que se busca despejar nos ombros da sociedade como condição para a rolagem de empréstimos de bancos e credores. Quando multidões cercam parlamentos e tem seus anseios rechaçados por eles é porque um ciclo da história se esgotou.
Em recente entrevista à Carta Maior, o filósofo Vladimir Safatle, afasta a interpretação algo ingênua de quem vê nessa clivagem uma saturação “da forma partido”, supostamente substituída por ferramentas digitais mais ágeis, como o Twiter e o Facebook na expressão do conflito social.
Safatle ressalta que as principais mobilizações de massa que ocorrem nesse momento acontecem, de fato, à margem dos partidos, não raro, à sua revelia. “O que limita seus resultados”, pontua. “Não creio que podemos ‘mudar o mundo sem conquistar o poder’. Quem gosta de ouvir isto são aqueles que continuam no poder. (…) Só se contrapõe ao domínio do mundo financeiro através de um aprofundamento da democracia plebiscitária”, defende na entrevista.
O déficit de democracia emerge, portanto, como o mais importante desequilíbrio revelado pela crise, em contraposição ao poder capilar, estrutural, midiático e institucional acumulado pelo capital financeiro.
Tal hegemonia, explica o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, em textos inéditos de seu novo livro publicados por Carta Maior (“capítulo V, ‘Sistema de Crédito, Capital Fictício e Crise’), não é um acidente de percurso. Trata-se de um desdobramento estrutural da tendência ao mesmo tempo expansionista e concentradora do capitalismo, o que torna a tarefa de contrastá-la um desafio de reposicionamento estratégico da esquerda. A começar pelo seu conceito de democracia, hoje acomodado aos limites do formalismo parlamentar.
A dinâmica que leva à concentração de poder e de capitais em mãos do sistema financeiro –sancionada politicamente pelas medidas desregulatórias da dupla Tatcher /Reagan— gera uma inevitável “superprodução” de capitais fictícios que deu origem à especulação avassaladora seguida da crise atual.
Mais que isso, porém, ela colonizou a agenda política, que cuidou de terceirizar os destinos da economia e da sociedade aos desígnios das finanças, ou à “eficiência ímpar dos mercados autorreguláveis para alocar recursos e gerar resultados, com maior eficiência e menor custo”.
Apenas um governo parece ter entendido a saturação desse processo ao devolver ao poder plebiscitário da sociedade as decisões relativas à superação da crise financeira. “Somos uma democracia, não um sistema financeiro” , disse o presidente da pequena Islândia, Ólafur Grímsson.
Ser uma democracia, não uma subseção do sistema financeiro, ou uma “democracia real” como pedem as multidões em Portugal, Espanha e Grécia, em pleno apogeu do capital financeiro, não é tarefa que se improvise.
O crepúsculo ideológico do neoliberalismo acentuado pelos desdobramentos da crise, ainda não foi suficiente para reduzir a distância entre o poder dos blindados financeiros e os tímidos ensaios de democracia participativa. Imaginar que isso poderá ser feito à margem de estruturas organizativas, a exemplo de partidos políticos enraizados em instâncias democráticas, não parece ser uma escolha acertada à luz do jogo bruto em curso.
Jogá-lo para valer implica a construção de linhas de passagem que exigem direção, coordenação e profunda capilaridade social.
Em entrevista a um programa de televisão brasileira em 2002, o filósofo István Mészàros, de insuspeita radicalidade analítica, antecipava que o desafio enfrentado pela esquerda na atualidade não é “simplesmente vencer um bando de capitalistas” e substituí-lo por outro grupo capturado pela mesma lógica dos mercados.
“Sem estratégia não se pode ter tática”, discorreu Mészàros:“Sem uma perspectiva estratégica desses problemas você não pode ter soluções do dia-a-dia… eles não podem ser simplesmente tratados no nível de um artigo que apenas relata o que está acontecendo(…) No lugar disso, deve ser apresentada uma perspectiva histórica. Marx argumenta que os capitalistas são simplesmente personificações do capital. Não são agentes livres; estão executando imperativos do sistema. Então, o problema da humanidade não é simplesmente vencer um bando de capitalistas. Pôr simplesmente um tipo de personificação do capital no lugar do outro levaria ao mesmo desastre; cedo ou tarde terminaríamos com a restauração do capitalismo. Os problemas que a sociedade está enfrentando não surgiram apenas nos últimos anos. A única solução possível é a reprodução social com base no controle dos produtores. Essa sempre foi a idéia do socialismo”.
“Precisamos”, emenda Vladimir Safatle, na mesma direção, na entrevista à Carta Maior, “(construir) um discurso de esquerda alternativo que esteja em circulação no momento em que as possibilidades de ascensão social (da chamada classe C) baterem no teto”.
Naturalmente, Safatle condensa na palavra “discurso” o sentido amplo da práxis política. O que inclui a mobilização organizativa capaz de revitalizar as fronteiras da democracia e do socialismo para além dos limites embolorados dos nossos dias.
A dimensão sistêmica da crise, portanto, não é um atributo apenas da esfera econômica, mas argui a capacidade da esquerda de intervir para mudar o rumo da engrenagem em pane, em vez de se comportar apenas como um dente constitutivo da sua mecânica.
O que se assiste por enquanto é a degradante marcha em sentido contrário. Cada passo hesitante que governantes supostamente progressistas dão para impedir que a crise se espalhe é mais um passo que pavimenta o seu avanço. O fatalismo construído ao longo de décadas de recuos e concessões aos mercados e a seus dogmas, e o correspondente desarmamento organizativo que se seguiu, explicam a sobrevida de um hegemonia neoliberal em frangalhos.
O capitalismo não se auto-destrói. Assim como não existe autorregulação dos mercados não há auto-imolação do capital. Se as respostas não vierem da esquerda, a direita fará o serviço, como tem feito na periferia européia com mão-de-obra social-democrata.
Na crise de 29, quando a Bolsa de Nova Iorque derreteu e o desemprego atingiu um em cada quatro norte-americanos (em 1933 a taxa de desemprego foi de 24,9%), a relação de forças existente no mundo era bem distinta da atual.
Doze anos antes uma revolução operária havia instalado o primeiro governo revolucionário numa das maiores nações do planeta. A Alemanha atingida pela confluência entre a crise internacional e as reparações da Primeira Guerra, também viu eclodir um poderoso movimento socialista que quase tomou o poder. Seu fracasso levou à ascensão do nazismo.
Desempregados e veteranos da Primeira Guerra Mundial ergueram uma favela na principal avenida de Washington. Enfrentaram o Exército quando o governo tentou removê-los. Famílias famintas, desempregados rurais e urbanos entraram em conflito com as forças da ordem em vários outros pontos do país. Entre 1929 e 1933, o PIB dos EUA recuou 27%. Nove mil bancos quebraram. A taxa de desemprego só retornaria a um dígito com o esforço de mobilização provocado pela Segunda Guerra, em 1941. Foi um tempo de miséria e desmonte econômico. Mas simultaneamente havia um vigoroso movimento de organização social , com expansão do sindicalismo e das idéias socialistas no mundo.
Foi essa relação de forças que impôs uma solução heterodoxa para a crise de 29, que hoje assumiria ares de uma revolução. O New Deal estabeleceu uma dura regulação estatal dos mercados financeiros, abriu frentes de trabalho, multiplicou direitos operários, incentivou a sindicalização em massa, criou bônus de alimentos, financiamento de moradias e investimento público maciço em infra-estrutura. É a ausência dessa mesma correlação de forças e de estrutura organizativas correspondentes que fazem de Obama um simulacro risível do democrata Franklin Roosevelt que governou o país nos anos 30. Em contrapartida, é a existência desse contraponto organizativo que, segundo o perspicaz ponto de vista de Robert Kuttner, explica por que uma camareira do Sofitel de Nova Iorque não teve medo de denunciar o dirigente máximo do FMI, enquanto partidos e governantes servem obsequiosamente às imposições dos mercados financeiros. O jogo, portanto, é muito claro. Trata-se de saber se os partidos de esquerda pretendem jogá-lo ou perder por WO.
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